sábado, 23 de junho de 2007

E seja o que Deus quiser. (CONTO)

E seja o que Deus quiser.

Ufa... Eu havia chegado! Já não agüentava mais aquela angústia. Apesar de eu não ter motivos pra reclamar! O Novaes quase morreu no México. Ficou preso. Não sei quanto tempo. A mulher dele quase caiu dura quando recebeu a notícia. Imaginei-a sem o marido, criando sozinha aquela meninada chata que ela tem. Ainda mais desempregada! Embora eu acho que o Lauro do táxi tem um casinho com ela. Pois de onde que ela costurando pra fora, e o Novaes trocador de ônibus, conseguiriam terminar aquele muro?
Mas o meu caso era diferente, eu tinha ido à Europa. Não tinha deserto mexicano, nem metralhadora americana. E por fim das contas eu já estava dentro do carro, fora das temíveis salinhas da imigração, com passaporte carimbado e tudo!
O visto de turista me dava três meses, o que seguramente eu estenderia a alguns anos vivendo ilegalmente, como todos fazem.
Depois de um bom tempo rodando pela cidade, indo cada vez mais longe do aeroporto donde fui apanhado. Paramos em frente a uma casa velha, surrada pelo tempo e desleixo. Norberto, um típico cearense cujo este, na boca lhe faltava um dente canino do lado esquerdo, sorriu-me desfalcada, porém, amistosamente e disse: É aqui.
Na hora me bateu aquele frio que sobe pela espinha e pensei: Minha nova casa!
Norberto era um amigo que Rui, o cunhado da minha vizinha que acabou aceitando minha vinda, havia conhecido assim que chegou. Abriu a porta do carro e saiu.
__Vamos antes que os vizinhos vejam a quantidade de malas, esses vizinhos aqui não têm compaixão por ninguém, disse ele.
Saí ligeiramente e apanhamos as malas no bagageiro do furgão.
Não fui recebido por mais ninguém, todos que moravam ali tinham dois empregos e ficavam fora de casa quase todo o tempo do dia. Bateu-me uma sensação de vazio. O que de fato fazia sentido, pois a única coisa que sentia estar cheio, era o meu saco de tantas horas naquele treme-treme do avião. Todo o resto estava vazio: minha consciência, meu futuro como também, o meu estômago.
Norberto pareceu ler meus pensamentos me oferecendo o pacote de pão de forma e um embrulho de plástico com presunto que estavam na sua divisão da geladeira, que por sua vez, dava choque se tocada com os pés no chão.
Não aceitei. Menti dizento estar satisfeito com a refeição servida na aeronave, entretanto aquela refeição horrível cujo molho, não dava para identificar se era doce ou salgado, na verdade não deu nem pro cheiro. Não gosto de dever nada a desconhecidos, e o “cabeça chata” não me parecia ser uma pessoa em que se pode ter muita confiança. Não! Eu não quero mesmo! Depois me fica cobrando favores. Nem conheço o cara? Vai que ele me põe numa roubada! fui muito claro com Rui: "Se forem me buscar, eu faço questão de pagar pelo serviço". Já dizia meu grande mestre sambista, Bezerra: “Malandro é malandro, mane é mane!”
Não passou muito tempo e Norberto atarantado, juntando suas coisas pra chegar a tempo no seu segundo turno da jornada diária de trabalho, saiu dizendo:
__ Fique a vontade. Daqui a pouco o pessoal chega também.
A casa não tinha sofá, até porque, se ali houvesse um, teríamos que jogar na sorte: ou fica a minha bagagem ou o sofá. De fato acho que escolheriam ficar com minhas malas, um sofá não ajuda a dividir o aluguel, e apesar de parecer um favor que Rui estava me fazendo em me acolher, o fato de eu estar ali seria bom para todos, pois teriam mais um pra dividir a renda paga mensalmente ao senhorio, o que também não era barato.
Não teve outro jeito, sentei em cima da mala maior que estava deitada no chão e fiz da outra que sobrou um encosto. A noite chegara e o frio viera consigo, um frio que até então eu desconhecia. O meu moletom que usei durante o dia parecia já não ser suficiente. A calça jeans que eu trajava parecia estar molhada, e as minhas mãos, que já estavam secas, já se notava um rubor acentuado, sinal que não tardaria a dar-me frieiras. Eu as esfregava rapidamente nas pernas, o que fazia esquentar um pouco até que elas voltassem a parecerem molhadas. Já era quase dezembro, e será o primeiro Natal que passarei longe da minha mulher e meus três filhos, pensei com um nó apertado na garganta. Não sei o que iria ser pior, passar o Natal aqui, ou passar junto a eles e não ter dinheiro pra comprar nem o Peru, mal-mal a farofa e o arroz. Minha filha pediu ao Papai Noel uma boneca Barbie, meu dois filhos mais novos pediram uma bicicleta e um vídeo-game. Eu pedi que ele me desse um emprego, mas como não fui alfabetizado, não tive como escrever minha "cartinha". Talvez esteja aí o motivo de três anos de pedidos não realizados.
Senti uma lágrima escorrer sob me olhos.
Me contive e fui ao banheiro lavar o rosto pensando na possibilidade de depois, tirar a água dos joelhos e tomar um banho para relaxar um pouco. O banheiro me fez lembrar o da rodoviária da minha cidade, onde apanhei o ônibus até Belo Horizonte, podendo assim embarcar no meu vôo.
Eu já não tinha carro, o vendi para ter o dinheiro para custear metade da minha vinda. O restante do dinheiro eu consegui fazendo um empréstimo pessoal em uma finaceira. Eu gostava da minha Brasília, embora fosse azul e não amerela, tinha lá seu charme, entretanto já não me estava sendo útil, pois não tinha dinheiro para ficar pondo gasolina e fazendo passeios.
Ao lado do vaso sanitário, estava a banheira com uma daquelas redinhas de plástico para evitar que molhe o piso, quase preta de mofo. Dentro da banheira, na parede, estavam duas torneiras e uma duchinha de mão, nada de chuveiro elétrico. Concluí que era com aquela mangueirinha que se tomava banho. Abri um dos registros para testar: um gelo! O outro, no início a água estava morninha, porém alegria de pobre dura pouco, no meu caso, não durou nem cinco segundos e a água já estava fria também. Desisti.
A fome foi apertando e pensei em ir a uma padaria, entretanto eu não sabia o que tinha nem na esquina debaixo, ainda mais onde ficava uma padaria, tampouco sabia se era assim que este estabelecimento onde se vende pães, realmente se chamava. O medo de ficar perdido naquele território totalmente desconhecido que circundava a minha própria casa me dominou. E também se isso acontecesse, eu não saberia se eu pedindo informação a alguém, eu compreenderia. Decidi esperar por Rui.
Aos poucos os outros foram chegando, já eram dois, que com minha presença, passara a três e ainda faltavam dois, numa casa com dois quartos, um banheiro “semi-rodoviário”, uma cozinha engordurada, e uma sala que, coitada, estava abarrotada com minhas duas malas que acomodei em um canto se fazendo passar por uma poltrona. Nada do Rui.
Fiquei na janela observando o movimento. Já era tarde e a rua já estava repleta de carros em cima dos passeios. As casas não têm garagem, disse-me Juarez, um mineiro de Governador Valadares também que dividia a casa. Acrescentou que isso lhe causara o mesmo estranhamento quando havia chegado. Logo pensei que, se ocorresse desta maneira todas as noites no Brasil, uma metade dos carros iriam ser roubados e os que sobrassem estariam cheio de multas nos limpadores de pára-brisas.
Rui por fim chegou. Acompanhado por Mineiro, que como o próprio nome isenta a necessidade de explicação. Recebeu-me com muita hospitalidade, já o meu outro conterrâneo nem tanto.
__E ai? Como foi a viagem? Perguntou-me Rui retirando os sapatos. Respondi que tinha sido tranqüila. Na verdade a viagem tinha sido terrível, muita turbulência e ainda tive que agüentar um casal de irmãozinhos pequenos ao lado de sua mãe brigando o tempo inteiro pra saber quem iria sentar na janela. Se aquela merda abrisse, eu os jogaria juntos lá em baixo. Querem a Janela? Tomem a Janela!
__Que bom! Completou ironicamente Mineiro, que na sua primeira tentativa de vinda ao país, havia sido mandado de volta no mesmo avião em que chegou.
Rui foi pegando as minhas coisas e foi entulhando-as no quarto em que eu ficaria. O quarto tinha duas camas, daquelas de tubo de metal, tipo militar, que se podem dobrar ao meio, beges, uma do Juarez e a outra de Norberto, o cearense.
__Provisoriamente você fica aqui nesse colchonete, ali naquele canto perto da varandinha, disse-me Rui.
__Ali é frio pra caralho! Completou Mineiro, que saiu do quarto logo em seguida balançando a cabeça negativamente. Não me desgastei nem com o gesto do excelentíssimo senhor Edvanderson Rocha da Silva, o vulgo mineiro, que parecia ser o dono do mundo, tampouco com as minhas novas acomodações. Eu achei até bom, porque assim eu mesmo dormindo, ficava alarmado pra ninguém mexer nas minhas coisas. Qualquer movimento nas malas elas roçariam nas minhas costas como um alarme contra intrusos.
Arrumei meu “ninho” e fui pra cozinha, onde estava Juarez fazendo um jantar com arroz, feijão e almôndega com molho de tomate, contando como foi seu dia de trabalho. Juarez estava mais vermelho que o molho que estava preparando. O dia não havia sido nada bom. Foi humilhado pelo seu patrão que lhe chamou de brasileiro morto de fome. Não quis me intrometer no assunto. Fiquei apenas ouvindo, quando me ocorreu de ligar pro pessoal lá de casa. Perguntei ao Rui onde tinha um telefone público. "Na segunda esquina à direita", me respondeu indo pra janela para me mostrar gestualmente o caminho. Acrescentou que iria tomar um banho e depois faria o jantar dele e fez questão que eu comesse também. Dessa vez não poderia recusar pois se o fizesse eu me imaginei morrendo po inanição.
Na rua o frio parecia duplicado. O vento cortava o meu rosto como giletes. A essa altura eu já havia recorrido a mais um moletom e um blusão que foi do meu sogro. A fumaça que saía da minha boca de tamanho era o frio, me deu vontade de fumar. Já não fumava a mais de um ano, desde quando tive um problema no coração que quase me fez ver a cara de São Pedro. Tinha um bar aberto, entretanto a vergonha e a insegurança foi maior do que minha ansiedade e não comprei um maço que parecia me sorrir na vitrine do caixa.
Cheguei à cabine e não tive dificuldades de identificar como se colocavam as moedinhas na ranhura do telefone. Tive orgulho de mim, besta, mas tive. O meu vaidoso orgulho acabou na hora de digitar o número de destino. Subiu-me uma raiva tremenda. Só se ouvia o “tu-tu-tu” emitido pelo gancho gelado na minha orelha. Tremenda burrice de minha parte. Havia me esquecido de perguntar qual era o código para fazer chamadas internacionais para o Brasil. Puta que pariu! Reclamei em voz baixa.
A raiva era tanta que o frio suavizou no rosto na caminhada de volta.
Quando retornei a casa, Rui já estava no banho, reparei que havia um aquecedor no armário da cozinha, que provavelmente abastece aquela torneira brevemente morna do banheiro com água quente. Preferi esperá-lo terminar para tirar a minha dúvida ao invés de ficar gritando o meu diálogo com uma porta separando as duas partes. Assim eu não acordaria os que já estavam dormindo.
Como no meu novo quarto não havia porta e na sala já não estava lá o meu sofá-mala, aproveitei para esperar o Rui deitado no colchonete a mim designado. O banho de Rui estava sendo demorado, o que maximizou um pouco mais a minha raiva.
Fui tomado pelo cansaço. Adormeci. Puto e com fome.

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